O Pecado de Olhar


Como a foto de uma menina sudanesa observada por um abutre, feita no Sudão em 1993, mudou a história do fotojornalismo e a vida do homem que a capturou
O avião que trazia a ajuda humanitária havia pousado há alguns poucos minutos no chão seco e arenoso do povoado de Ayod, Sul do Sudão. Em questões de segundos, centenas de pessoas, envoltas em farrapos ou mesmo nuas, debilitadas pela fome e pelo calor, corriam desesperadamente de um lado para outro tentando garantir o seu quinhão de comida. Em meses, aquela era a primeira ajuda que recebiam e não sabiam quando ou se haveria uma próxima. No meio da confusão, o fotojornalista sul-africano Kevin Carter, que tinha chegada a aldeia no avião, apontou sua câmera para uma cena aterradora, que nunca deveria acontecer: uma criança esquelética, contando não mais do que cinco anos, estava agachada, olhando para o chão, como se escondendo do mundo. Atrás dela, muito próximo, um abutre a observava pacientemente. Mesmo terrível, a cena era real, assim como a foto tirada por Kevin naquele quente mês de março de 1993. O fotografo ainda não tinha como saber, mas aquele registro se tornaria um dos mais impressionantes da história do fotojornalismo e mudaria a sua vida.
Kevin Carter não era o único fotojornalista em Ayod naquele dia. Ele tinha João Silva como companheiro. Os dois faziam parte do que se convencionou chamar de Clube do Bangue Bangue. Era assim que boa parte da imprensa mundial chamava um grupo de quatro fotojornalistas sul-africanos que cobria as tensões ocorridas nos últimos momentos da África do Sul do Apartheid. Além João e Kevin, o núcleo original do “clube” era formado por Greg Marinovich e Ken Oosterbroek. Em março de 1993, entretanto, Kevin e João não estavam cobrindo nenhum discurso de Mandela ou conflitos entre as etnias xhosas ezulus. Eles tinham viajado ao Sul do Sudão para tentar registrar o que acontecia em um dos lugares mais instáveis e violentos do planeta na época.
O Sudão estava em dividido em uma guerra longa guerra. Na época, a imprensa e os grupos humanitários falavam até mesmo em “genocídio” no país. As tribos cristãs do Sul do Sudão tinham se reunido sob o grupo rebelde Sudanese People’s Liberation Army, o SPLA, ou Exército de Libertação do Povo Sudanês. Lutavam contra o governo Cartum, dominado por nortistas islâmicos desde a independência do país, em 1956. Nos anos 1980, o conflito havia se intensificado, especialmente quando o governo adotou a lei islâmica, a xirá. Kevin e João tinham o objetivo de fazer uma reportagem sobre a recente e violenta divisão do SPLA.
Para os jornalistas, o Sudão nunca foi um país fácil de trabalhar. Incomodavam os líderes guerrilheiros. Nem mesmo aOrganização das Nações Unidas (ONU), tinha facilidade para entrar no espaço aéreo do país e pousar. Os rebeldes eram quase inflexíveis com esse tipo de permissão. Mesmo assim, Kevin e João decidiram tentar a sorte. Em março de 1993, saíram da África do Sul direto para Nairóbi, capital do Quênia e melhor ponto de trânsito para viagens ao Sul do Sudão. Ficaram estacionados na cidade durante dias, sem ter muito o que fazer. Os conflitos no Sudão estavam intensos e não havia autorização ou interessados em fazer o trajeto. Quando as esperanças (e os recursos financeiros) estavam próximos do fim, chegou a oportunidade que tanto esperavam: facções rebeldes tinha dado permissão à ONU para pousar e descarregar os mantimentos. João e Kevin seriam bem-vindos no voo. Os dois comemoraram e aceitaram prontamente a oferta.
O convite não era altruísta, mas sim uma jogada política da ONU, que enfrentava grandes dificuldades em obter fundos para o Sudão. Recentemente, a organização havia feito um apelo internacional por 190 milhões de dólares. Mas nem um quarto do montante havia sido conseguido. Levar dois fotojornalistas, neste sentido, poderia ser uma forma certeira de chamar a atenção do mundo para o drama do país africano. As fotos que poderiam surgir daquele pouso do avião de carga “Hércules” seria a publicidade perfeita. E foi exatamente isso o que aconteceu quando o pouso foi feito.
Momento Decisivo
Quando os sudaneses começaram a se atropelar, Kevin e João viram possibilidades de boas fotos em quase todas as direções. E assim os dois se afastaram na tentativa de dar conta de uma área maior. Enquanto João se deteve em uma clínica próxima do local, utilizada para atendimento dos casos de saúde mais grave, Kevin ficou na parte de fora. Foi quando viu a cena da criança, uma menina, e um abutre à sua espreita. Não teve dúvida e fez vários cliques. O fotógrafo ficou completamente extasiado com a foto que fizera. Estava muito agitado. Momentos depois, com a mão no ombros de João, Kevin falava rápido e profundamente emocionado: “Cara, você não vai acreditar no que acabei de fotografar!”. Depois de escutar a história e ver o registro, João, mesmo orgulhoso, teve uma pontinha de ciúmes. Pois não havia dúvida: a foto feita por Kevin era coisa boa, algo que o famoso fotógrafo francês Henri Cartier-Bresson chamaria de “momento decisivo”. Ela com certeza incendiaria os noticiários internacionais.
A publicação da foto não poderia ter sido publicada em um veículo mais apropriado para dar destaque ao que acontecia no Sul do Sudão. Na época, a editoria internacional The New York Times fazia uma matéria a região e encontrava grande dificuldade em conseguir fotos para ilustrar o texto. Pouca gente havia estado naquele remoto lugar. Foi quando surgiu a informação de que Kevin Carter tinha estado lá e feito um foto brilhante. Nancy Buirski, responsável pela editoria, entrou em contato imediatamente com Kevin e conseguiu que a foto fosse publicada pelo jornal. O sucesso foi imediato. Em pouco tempo a imagem estava correndo o mundo, uma tremenda sensação. Jogada bem sucedida da ONU, que conseguiu alavancar as doações para o Sudão e sucesso para Kevin, que um ano depois levou para casa o prêmio Pulitzer, o mais importante no mundo do jornalismo.
A foto, porém, também trouxe revezes para o fotógrafo. Buirski lembrou, anos mais tarde, que logo que a foto foi publicada, as pessoas começaram a ligar para a redação. Queriam saber o que havia acontecido com a menina, se ela havia sobrevivido e, principalmente se o fotógrafo havia lhe ajudado. Uma chuva de perguntas que começava a afetar Kevin. Primeiro, ele contou que havia espantado o animal e que se sentou debaixo de uma árvore para chorar. As perguntas continuavam mesmo assim. Ele então completou a história dizendo que viu a menina tinha se levantado e caminhado até a clínica. A opinião pública não se satisfez com a explicação. Queria saber porque Kevin apenas havia observado e não e a levado no colo para um lugar seguro. Não havia resposta fácil para a indagação.
Debate ético
A história da foto da menina e do abutre gerou uma ampla discussão ética pública envolvendo a atuação de jornalistas em campos de guerra: deveriam estes prestar assistência ou apenas serem observadores, relatando ao mundo o que a guerra provoca? Alguns fotógrafos, inclusive aqueles do “Clube do Bangue Bangue”, tentavam ajudar como podiam aqueles que fotografavam. Já tinham socorrido vítimas, ajudado pessoas a sair da zona de tiros ou mesmo levado feridos para hospitais. No entanto, não havia nenhum parâmetro, nenhuma regra, nenhum acordo tácito para aquele tipo de situação limite. A interferência de jornalistas em zonas de guerra poderia transformar os próprios jornalistas em alvo. Ajudar ou não ajudar envolvidos no conflito nunca foi e ainda hoje é uma questão nebulosa.
O questionamento em torno da foto perturbou muito Kevin. Talvez outro fotografo tivesse lidado melhor com a situação. Mas com Kevin foi diferente. Antes mesmo da viagem ao Sudão, o fotojornalista enfrentava uma série de problemas pessoais. Relacionamentos malsucedidos, problemas com consumo excessivo de álcool e vício em mais de um tipo de droga. Para piorar, Kevin não tinha uma base familiar sólida e lhe faltava estabilidade no emprego. Trabalhava apenas para jornais sem expressão ou como freelancer. Mesmo quando ganhava dinheiro, como no caso de sua foto no The New York Times, este acabava sendo gasto para pagar mais drogas ou para quitar dívidas antigas.
Boa parte de seu drama pessoal tinha advindo da pressão de trabalhar em zonas de conflito. E além das cenas chocantes, que se tornaram parte de seu cotidiano, seu trabalho ainda acabou lhe gerando diversos inimigos. De um lado, grandes jornalistas invejosos do sucesso do “Clube do Bangue Bangue”; de outro, pessoas que não entendiam como alguém podia fotografar tantas desgraças como se fosse invisível.
A foto do abutre foi o ápice do trabalho de Kevin. Mas não o fim. O fotografo ainda continuou trabalhando na guerra. Era o que sabia fazer de melhor. Quando o conflito terminou, no entanto, com vitória para as forças democráticas de Mandela, Kevin não conseguiu se ajustar ao novo momento. No dia 27 de julho de 1994, aos 33 anos, levou seu carro até um local de sua infância e, utilizando uma mangueira para levar o monóxido de carbono do escapamento para dentro do veículo, cometeu suicídio. Deixou uma triste nota que dizia estar deprimido, sem dinheiro para pagar as contas, sem dinheiro para ajudar as crianças. Se disse perseguido pela lembranças de assassinatos, cadáveres, raiva e dor. Pela lembrança de crianças feridas ou famintas. Lembrança de “homens malucos com o dedo no gatilho”.
O suicídio de Kevin chocou seus companheiros de “Clube do Bangue Bangue”, que já haviam perdido, em zona de tiro, outro camarada, Ken Oosterbroek. O trabalho de Kevin, no entanto, sobreviveu. Sua foto continua até hoje sendo um libelo contra a guerra e contra a fome no continente africano. A prova concreta de como uma fotografia pode provocar as pessoas e entrar, definitivamente, para a história.
Saiba mais: se você quer saber mais sobre a história desta e de outras fotografias feitas pelo “Clube do Bangue Bangue”, leia o livro “O Clube do Bangue Bangue – Introdução de uma Guerra Oculta”, de Greg Marinovich e João Silva. O livro, um clássico para quem se interessa por fotojornalismo e história contemporânea, serviu de base para a elaboração desta matéria. O título desta, inclusive, é o título de um dos capítulos de livro.
fonte: http://cafehistoria.ning.com

Entrevista a Larry Wachowski, Lana Wachowski e Tom Tykwer - realizadores de «Cloud Atlas»

Cloud Atlas combina relações cármicas passadas, com elementos da teoria do caos, num verdadeiro potpourri de géneros. Complicado? Podem crer. Mas que nos pede uma saborosa segunda visão e, inevitavelmente, se cola a nós. 

Larry Wachowski, Lana Wachowski e Tom Tykwer

Everything is connected, tudo está interligado. Tal como o bater de asas de uma borboleta pode afetar o curso natural das coisas, também uma ação e uma reencarnação poderá acabar nos juntar a outros. Neste caso, foi o que sucedeu com cinema do alemão Tom Tykwer – lembram-se de Corre, Lola Corre (1998), explorando as diferentes possibilidades do mesmo ato? – a aliar-se ao dos manos Wachowski que tão bem combinaram o policial, a ficção ficção científica num novo universo filosófico na trilogia Matrix. Percebe-se a atração mútua pelo projeto. É esta viagem intemporal que nos sugere Cloud Atlas, o ambicioso filme de Tykwer (47) Andy (45 anos) e Lana (47), na complexa adaptação do romance de David Mitchell
Ela que era Larry (Laurence), antes de assumir a transição transexual que decorreu durante a última década. Lana Wachowski é agora o seu nome oficial, tendo Larry sido apagado, por exemplo, das listas da IMDB. Apesar dos Wachowski recusarem entrevistas e não aparecerem em público há mais de uma década, o contrato com a Warner, a distribuidora do filme, acabou por fazer com que Lana saísse definitivamente do armário e se revelasse publicamente na apresentação de Cloud Atlas em Toronto. Aviso à navegação: ainda que se corra o risco da curiosidade sobre a sexualidade de Lana se sobrepor ao tema do filme, convém desde já dizer que muito do que se passou com ela é também abordado em Cloud Atlas. Tudo começou quando leram o livro há seis anos atrás; e que começaram a escrever na Costa Rica, logo após a eleição de Obama. Quatro anos de pré-produção e 60 dias de rodagem. É obra.

Eram uma vez seis histórias...
Um diário a bordo de um navio no Pacífico, em 1949, relaciona-se com cartas de um compositor a um amigo; ainda o mistério de um homicídio numa central nuclear, a farsa de um editor numa casa de repouso, a rebelião de clones na futurista Neo Coreia; por fim, uma lenda de uma tribo num Havai pós apocalíptico próximo do terceiro milénio...
 


Então, são agora três gémeos, como dizem?
Tom Tykwer – (risos) É verdade. 
Lana Wachowski – Sim, adotamos o Tom.(risos)
Andy Wachowski – Vamos todos casar-nos... (risos)
(Risos) Na verdade, todos dizem que se complementam. É algo que já vem de trás?
AW – Desde miúdos que brincávamos juntos. Éramos inseparáveis. Sempre quisemos trabalhar juntos. Abrimos uma empresa de pintura para pagar a universidade e quase ao mesmo tempo saímos de escolas respeitáveis e acabamos a fazer uma empresa de construção. E fizemos a casa dos nossos pais. Ainda lá está... (risos) Adoro a minha maninha!
LW – É muito bonito ter uma pessoa assim tão perto, com que posso partilhar leituras. Juntos partilhávamos os mesmos sonhos. Fomo-nos desafiando um ao outro. Um pouco como sucedeu quando o Tom entrou a bordo do projeto. Até porque se tratava de um sonho impossível. Apesar de parecer uma equipa impossível, acabou por funcionar muito bem. Às vezes éramos nós que desanimávamos, mas o Tom puxava por nós e dávamos alento.
TT – É um belo que filme que atravessa raças, supera diferenças de sexo. Nesse sentido, é um filme que abre muitas janelas. 
Como é que dividiram o vosso trabalho no filme?
TT – Sim, tínhamos três equipas. Por vezes, encontrávamos-nos via skype e partilhávamos planos. Mas estávamos sempre ligados.
AW – Por vezes, estávamos todos juntos. Mas era raro.
LW – Toda a planificação, as transições, que eram muitos meses. Mas depois a rodagem foi toda em apenas 60 dias. Todo o trabalho digamos que aconteceu antes. Mesmo o trabalho com os atores foi feito antes em ensaios.
TT – Eu poderia envolver-me mais com a música e a composição, pois também componho, ao passo que o universo de ficção científica teria de pedir mais ajuda ao Andy e Lana.
E como foi pegar neste livro, considerado ‘impossível’ de adaptar?
LW – Foi isso mesmo que nos atraiu. Pois era um desafio tentarmos os três perceber como isso poderia ser feito. Fundir a estética e os estilos. Ainda que os nossos filmes tenham semelhanças profundas. Fomos descobrindo que gostávamos das mesmas partes do livro e das suas justaposições. Eram indicadores de que poderíamos trabalhar juntos. Mas o romance tem elementos de cada história que incluem partes que se ligam uma a outra. 
Quase como um puzzle...
LW – Sim, como um puzzle. 
TT - O autor David Mitchell é um génio. Na nossa visão ou ele gostava do que fazíamos ou abandoávamos a ideia. Quando o conhecemos foi incrível.
LW – Estávamos nervosíssimos. Eu estava assustadíssima ao entrar num hotel em Cork, com mais de 100 anos. Começamos a reorganizar o quarto onde nos iríamos encontrar. Foi absurdo...
TT – Mas depois entra um tipo simpático e envergonhado. Mas já tinha lido o guião. Ele disse uma coisa interessante: “Eu tenho estas peças de Lego e tenho o meu castelo complexo; vocês mantiveram as mesmas peças e fizeram o vosso próprio castelo”. O que ele receava era uma descrição passo a passo do romance.
LW - Explicamos-lhe as nossas alterações e percebemos que ele tinha ficado fascinado. Nós adoramos o livro e ele o filme. 
Existe no filme um lado de consciência social interessante e atual...
LW – Gostamos da relevância de poder invocar os crimes passados ou injustiças ainda estão presentes em diferentes formas. Mas ainda acreditamos que existe um progresso indesmentível na nossa espécie. Especialmente, as mulheres têm a possibilidade de perceber como em pouco tempo as suas vidas mudaram. Mas os problemas continuam presentes. Quisemos que esse subtexto estivesse presente. O romance transcende essa ideia de ultrapassar barreiras. De resto, a transcendência pessoal é algo que tem estado presente no nosso trabalho.

Tom Hanks e Jim Sturgess 
Apesar de não ter lido o livro, é interessante ver como usam atores para diversos papéis, em ambos os sexos. É interessante como transcendem esse aspecto. 
LW – Acho que há humanidade está para além da nossa pele. A humanidade deve estar para além do género humano, da raça, da idade. Espero que alguém que veja o filme possa pensar também nesses aspetos. Nós construímos paredes para o outros. E enquanto as tivermos é mais difícil ser cruel.
Ao mesmo tempo, no filme de Tom, Três, esse lado da sexualidade também é transcendido. Acham que este filme pode ajudar a transmitir essa abertura e estereótipo?
TT – É interessante como coloca a questão, porque algo que nos atraiu em contratar um ator para as diferentes encarnações. Isso permite-lhes interpretar a humanidade. Um jovem, um homem uma mulher, um velho, um negro, um chinês. Mas no fundo são todos a mesma coisa. Há uma alma que atravessa todas essas encarnações que representa a perspectiva humana. E não foi nada que considerássemos religioso. Todos sabemos que transportamos genes de outras gerações. É tudo algo que está dentro de nós.
Lana porque sentiu que foi agora o momento para abordar esta transformação? Até que ponto foi importante para si? E acha que este filme tem esta mensagem?
LW - Sinto alguma responsabilidade em tornar pública esta minha decisão. Apesar de não ser uma celebridade, isso é algo que afecta bastante a minha vida. Mas como temos também um novo gémeo que gosta de gosta de falar com a imprensa. É algo com que eu própria me estou a tentar reconciliar.
Acha Cloud Atlas que tem potencial para ser um blockbuster?
TT - Não pensámos nisso. Um aspeto que nos une é que pode ser vendido como peça experimental, mas também como um filme popular. É um filme cheio de ideias, mas com muito entretenimento
AW – Sim, vão todos ver!

Artigo retirado do site www.c7nema.net

Mercados da fé


Ao analisar a trajetória das religiões evangélicas no Brasil, a historiadora Karina Bellotti, da UFPR, afirma que o crescimento do mercado gospel influencia também o consumo atrelado a outras religiões, como a católica

Alice Melo

Neste mês, a Revista de História aborda, em profundidade, a trajetória dos evangélicos no Brasil. Autora de texto que explica a ‘Imagem da capa’ desta edição e fonte da reportagem ‘No ritmo de Jesus’, a historiadora Karina Kosicki Bellotti, professora da UFPR e autora de “Delas é o reino dos céus: mídia evangélica infantil na cultura pós-moderna do Brasil (1950-2000)”, explica o crescimento das religiões evangélicas nas últimas décadas. Em entrevista, a pesquisadora destrincha o surgimento da cultura gospel e indica de que maneira ela está sendo assimilada pela cultura brasileira, em suas múltiplas formas e códigos.

Revista de História da Biblioteca Nacional: Diante do crescimento das igrejas evangélicas nas últimas décadas, poderia explicar as semelhanças e singularidades entre as religiões que vemos hoje?

Karina Bellotti: Observamos um crescimento evangélico, predominantemente pentecostal, desde os anos 1980, mais acentuadamente a partir dos anos 1990.  Uma das principais razões é o empenho de algumas igrejas e de fiéis na evangelização por diferentes maneiras – seja entre seus pares, seja pelos meios de comunicação (uso de rádio, TV, mídia impressa), seja pela estratégia de atração de fiéis em cultos, shows, celebrações, campanhas.
Os chamados protestantes históricos são os luteranos, presbiterianos, metodistas, anglicanos, episcopais, congregacionalistas – igrejas criadas no século XVI, herdeiras diretas e indiretas da Reforma, e que vieram para o Brasil no século XIX, com imigrantes europeus e missionários norte-americanos. Ao final do século XIX, esse grupo teve algum crescimento na trilha do café e em algumas cidades com núcleos republicanos liberais, que viam nos protestantes uma forma de trazer o progresso – e o embranquecimento – ao Brasil. Foram os primeiros a investir em meios de comunicação para evangelização.
Já os pentecostais surgem de um ramo evangélico americano do início do século XX nos EUA, em cultos que reproduziam o Pentecostes, a passagem bíblica de Atos dos Apóstolos em que o Espírito Santo manifesta-se em forma de glossolalia, dons de cura e profecia, no movimento de avivamento da Rua Azusa, em Los Angeles, em 1906. A partir de 1910  já havia pentecostais no Brasil – primeiro com Luigi Fancescon, fundador da Congregação Cristã no Brasil, e depois em 1911 com Gunnar Vingren e Daniel Berg, fundadores da Assembleia de Deus. Esse pentecostalismo se diversifica principalmente a partir dos anos 1950 e 1960, com o maior uso dos meios de comunicação, até chegarmos ao tal famoso neopentecostalismo, caracterizado pela Teologia da Prosperidade, pela liberalização dos usos e costumes e pela guerra ao diabo, presentes em maior ou menor grau em igrejas como a Universal do Reino de Deus, Renascer em Cristo, Igreja do Poder Mundial de Deus, dentre outras.
E ainda há uma diversidade de igrejas independentes, comunidades cristãs, casas de oração, devido ao caráter fragmentário do protestantismo. As ideias de livre interpretação das Escrituras e do sacerdócio universal dos santos, trazidas por Lutero, retiraram a autoridade da Igreja Católica na devoção e no controle dos rituais, da “comunicação” entre o fiel e a divindade, permitindo que qualquer pessoa pudesse sentir o chamado para servir a Deus – e abrir sua igreja. Esses elementos também são responsáveis pela atuação dos evangélicos – muitos que se convertem querem testemunhar a transformação que Deus fez em suas vidas, fazendo uma “evangelização informal”, no dia a dia – usando inclusive produtos do chamado “mercado evangélico”, camisetas, folhetos, cartões, marca páginas e presentes com mensagens evangelísticas, músicas, dentre várias opções de produtos que existem atualmente.
RHBN:  É possível afirmar que há uma identidade evangélica brasileira?
KB: Acho arriscado afirmar que existe uma identidade evangélica brasileira – os historiadores devem procurar as diferenças dentro da diferença, parafraseando Joan Scott. Da mesma forma que não é possível falar de uma identidade católica brasileira, pois há vários catolicismos dentro do catolicismo. O que ocorre é que vivemos desde os anos 1950/1960 um período de competição religiosa, que tem acentuado determinadas tendências, como o carismatismo, além do próprio crescimento do mercado evangélico, que cria determinadas padronizações de produtos para o público evangélico – livros de autoajuda e de vida cristã, música “gospel”, vestuário, e até material escolar  – que tem sido consumido por evangélicos das mais diferentes tendências. Porém, há diferenças profundas que precisam ser consideradas.
RHBN: O que diferencia as manifestações culturais evangélicas no Brasil do resto do mundo?
KB:De maneira geral, o protestantismo e o pentecostalismo brasileiro possuem uma forte ligação cultural com matrizes norte-americanas, mesmo que muitas igrejas atuais sejam nacionalizadas há gerações. A cultura evangélica norte-americana, que nunca foi homogênea, transita pelo mercado editorial, pelo mercado fonográfico, pelo circuito de palestras de pastores e pregadores no Brasil, e pela circulação de pastores e lideranças brasileiras por universidades e igrejas americanas. Vejo semelhanças, como o crescente investimento em estratégias empresariais de gestão de igrejas e de formação de lideranças; mas também vejo diferenças, como o maior crescimento pentecostal no Brasil – algo que nunca ocorreu de forma significativa dos Estados Unidos.
Nos Estados Unidos, a chamada “Igreja Eletrônica” era um entidade autônoma – existem ministérios de comunicação em que uma liderança vive de seu trabalho na mídia, em diversos meios. Já no Brasil, a comunicação é tanto usada para atrair pessoas para as igrejas, como também é a missão, o ministério de alguns evangélicos. Porém, é marcante o fato de o protestantismo sempre ter sido uma religião “de minoria”, vista por boa parte da sociedade brasileira como culturalmente estranha ao cenário afro-católico-espírita; é com essa realidade que os protestantes no Brasil sempre dialogaram, enquanto que nos Estados Unidos o protestantismo é a religião eleita como parte integrante da identidade nacional.

Carla Ribas, apresentadora de programa de TV da Assembleia de Deus / Acervo: Centro de Estudos do Movimento Pentecostal
Carla Ribas, apresentadora de programa de TV da Assembleia de Deus / Acervo: Centro de Estudos do Movimento Pentecostal
RHBN: Com a fragmentação de identidades na sociedade atual, o que entendemos por cultura brasileira está mudando. Neste movimento, o que ela estaria incorporando destas religiões que tradicionalmente não fazem parte da 'matriz religiosa' brasileira? E o contrário?

KB:Não acredito que exista uma só cultura brasileira – existem práticas e crenças mais identificáveis com a nossa história, mas não há como falar em algo genuíno deste ou daquele lugar, como se não houvesse um mínimo de hibridismo. Porém, para dar um exemplo bem conhecido, o caso das sessões de descarrego da Igreja Universal são uma forma de hibridismo de uma prática não muito comum do cristianismo – o exorcismo, a expulsão de demônios – e o descarrego feito na umbanda, mas com um outro sentido. Na Universal, espíritos conhecidos na umbanda e no candomblé são demonizados  - coisa que não ocorre nas religiões afro – e são exorcizados como forma de limpeza e libertação espiritual.
Sobre a via contrária: a questão da influência do protestantismo na cultura brasileira é uma preocupação de lideranças e até de intelectuais do meio. A atuação das igrejas chamadas “neopentecostais” têm mudado a dinâmica religiosa no Brasil, imprimindo uma competitividade que mobilizou a Igreja Católica a investir mais ostensivamente na evangelização e nos meios de comunicação, além da maior presença do carismatismo tanto no pentecostalismo como na Renovação Carismática Católica. Em algumas emissoras católicas, por exemplo, vemos a venda de produtos abençoados, livros, vídeos e CDs e DVDs, tal como em alguns programas evangélicos. O crescimento evangélico tem diminuído o número de terreiros em alguns lugares do Brasil, pela conversão de muitas mães e pais de santo. E também vemos uma pentecostalização do campo evangélico, com a incorporação de dons de cura e profecia, e até descarrego e cultos de libertação e ideias de prosperidade em igrejas que historicamente não o faziam, como algumas Assembleias de Deus. Agora, se isso trará uma mudança em termos de “ética protestante” – se é que podemos pensar dessa forma -, não vejo como medir em termos nacionais.
RHBN: Num tempo em que a felicidade é vendida como objeto de consumo, por que uma 'mercantilização da fé' é tão mal vista pela parte não-crente da sociedade?
KB:Porque no Brasil a religião sempre teve uma relação mais dissimulada com o dinheiro. Durante a Colônia e o Império, o catolicismo era a religião oficial, não necessitando do sustento direto dos fiéis, pois também contavam com recursos externos. Já as igrejas protestantes sempre foram autônomas e dependeram dos seus próprios recursos, incluindo o dízimo – que também faz parte das práticas católicas. Isso é um ponto – a ideia de que religião e dinheiro não se misturariam, um macularia o outro.
Quem de fato introduz um mercado de produtos cristãos são os evangélicos, inspirados no modelo americano, a partir dos anos 1980. Antes disso, a mídia impressa foi a maior produtora de bens culturais religiosos consumidos. Além disso, um incipiente mercado fonográfico surge a partir dos anos 1960 e 1970, desenvolvendo-se em gigantes como a MK, a Line Records, e até selos cristãos em gravadoras seculares, como a Som Livre e a Sony Music.
Outro elemento que surge e circula pelos meios de comunicação é a chamada “Nova Era”, um conjunto de práticas e crenças que alia tradições orientais e ocidentais, esoterismo e misticismo, e que se difunde por livrarias, oficinas, cursos, programas de Tv e rádio, vídeos, apontando para uma religiosidade mais fluida e individualizada. Mas, quando os produtos em questão são vistos de alguma forma como “portadores de cultura”, parecem não carregar uma aparência de “mercadoria”. Agora, o outro lado do conceito de “mercantilização da fé” estaria na venda de bens religiosos, de promessas de salvação ou de libertação de males físicos, emocionais, ou de carências materiais, disponíveis pela lógica da Teologia da Prosperidade, em que o fiel deve dar uma oferta em dinheiro em troca deste bem. Pois bem, isso também ocorre nas religiões afro – vemos aqui a ideia da troca do fiel com a divindade, para receber um benefício na terra.
Por isso, é importante que os historiadores que estudam religiões no tempo presente possam problematizar esses preconceitos e sensos comuns sobre as religiões no geral, pois há uma grande diversidade de práticas e crenças, atendendo a diferentes necessidades, sentimentos e vontades, e que se transformam ao longo do tempo e no contato diário entre crentes, e não-crentes. Saber olhar para o que é dinâmico é tão importante quanto reconhecer as permanências dentro dos fenômenos religiosos.

Teologia “Self-Service”


A expressão inglesa self-service significa ‘servir-se a si mesmo’, geralmente num contexto de restaurante. Você tem o poder de escolher o cardápio que quiser. O que mais lhe apetece é isto que você escolhe. A teologia do servir-se a si mesmo é extremamente egocêntrica. Aliás, ela é antropocêntrica, isto é, o seu fundamento é o homem e seus interesses pessoais. Nesta teologia eu pago para me servir e também ser servido. O mais importante é fazer a minha vontade, é o que penso. Não tenho interesse no que o outro precisa, mas no que eu necessito. Esta é a pratica de muitos membros de nossas igrejas. Vivemos um tempo de egoísmo galopante. As pessoas não aceitam determinadas mensagens. Desejam se servir de mensagens que falam de coisas ‘positivas’ e ‘prósperas’. A teologia self-service tem um viés pragmático. As pessoas são seletivas e artificiais.
O principio desta teologia é que eu tenho o poder de decidir o que é melhor para mim. Não tenho interesse em mensagens que condenam o pecado e suas diversas formas. Esta teologia é volúvel. A sua sustentação é comprometedora. Ela também é eclética. Tem toda a chance de ser mística. Ela desenvolve membros de Igreja descomprometidos com a mensagem da cruz, com o evangelho de Jesus. Afasta as pessoas e trabalha fortemente o individualismo. Ela não está interessada na pregação do genuíno evangelho, mas naquilo que mais funciona para o prazer dos seus adeptos. Na teologia self-service, o que me dar mais prazer em degustar é aí que tenho todo o meu interesse. Os seguidores desta teologia mudam de igreja com muita facilidade. Há muitas igrejas que têm um cardápio variado para todos os gostos. O que importa mesmo é agradar a todos. O negócio é exercer a “política da boa convivência”.
Os que seguem a teologia self-service não têm fundamentos sólidos. Escolhem não aquilo que mais edifica, a semelhança com Cristo, mas o que dá mais prazer. Vivem mais pelo pensar e sentir do que pela fé. Há uma tendência muito forte de liberalismo como modo de vida. Os fins justificam os meios. Os judaizantes que infernizaram os irmãos da Galácia e deram muito trabalho a Paulo, eram da teologia do servir-se a si mesmo. Eles rejeitaram a suficiência da obra de Cristo na cruz para optarem pelo cardápio mais “sofisticado”. Era o cardápio da justiça própria, do mérito pessoal para a salvação. O conteúdo da suficiência de Cristo não era relevante e, por isso, agregaram ao prato outro ingrediente para complementar e trazer prazer ao paladar teológico deles. O modelo desta teologia é o “eu mesmo”. O que importa é quem sou e o que quero. Valorizo o meu desempenho pessoal. Eu sou o centro e Cristo é periférico.
Esta teologia pode ser substituída pelo serviço a Deus e ao próximo. Só podemos vencer a teologia do ‘servir-se a si mesmo’ (egocêntrica) pela teologia da cruz (cristocêntrica). A nossa felicidade não está em fazer a nossa vontade, mas a vontade de Deus em Cristo Jesus. Fomos libertos do Maligno e de nós mesmos para fazermos toda a vontade de Deus (Gl 5.1). O cristianismo autêntico tem prazer em servir com alegria e singeleza de coração. O nosso modelo é Jesus (Mt 20.28; João 13). Jesus não serviu a Si mesmo, mas a nós se entregando em sacrifício vicário na cruz (Fil 2.5-8). Fomos chamados para exercermos o diaconato, servindo às pessoas. Pertencemos ao Reino dos servos, cujo Senhor é Jesus. Ele é o nosso modelo de alguém que não pensou em Si mesmo, mas em nós. A Sua teologia era servir ao Pai dando a Sua vida por nós na cruz. É por esta razão que o apóstolo Paulo ensinou magistralmente aos crentes em Roma ao dizer: “Porque nenhum de nós vive para si, e nenhum de nós morre para si. Pois, se vivemos, para o Senhor vivemos; se morremos, para o Senhor morremos. De modo que, quer vivamos, quer morramos, somos do Senhor” (Rm 14.7,8).
Pr. Oswaldo Luiz Gomes Jacob
Pastor da Segunda Igreja Batista em Barra Mansa – RJ
Colunista do Portal: http://www.adiberj.org/portal/
pitzerjacob@gmail.com

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18 de dezembro de 2012 • 11h39  atualizado às 11h39