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O cristianismo primitivo como objeto da história cultural: delimitações, conceitos de análise e roteiros de pesquisa.


Paulo Augusto de Souza Nogueira
RESUMO Este artigo levanta questões referentes às possibilidades e limites de se proceder a uma história cultural do cristianismo primitivo. São apresentadas algumas obras-chave que oferecem análises que tangenciam e antecipam questões da história cultural, como a história de doutrinas e ideias religiosas, psicologia histórica, história de práticas religiosas populares, entre outros. Em seguida são discutidas a terminologia do campo de estudos, a abrangência cronológica e o corpo de documentos. Por fim, propõe-se o estudo das categorias mentais do Cristianismo Primitivo e a consideração do mesmo como um sistema de linguagem, por meio do estudo de seus textos narrativos e ficcionais. 



Introdução 


Apesar da ampla produção acadêmica exegética, teológica e historiográfica não há muitos trabalhos acadêmicos que tenham oferecido uma visão de conjunto do Cristianismo Primitivo (CP)1 . Essa lacuna é tornada possível devido a pressupostos de duas correntes antagônicas que inviabilizam qualquer projeto de reconstrução histórica do CP. A primeira corrente entende que a história do cristianismo primitivo é equivalente, de alguma forma, à história do Novo Testamento. Ou seja, bastaria se estudar os livros que compõem o Novo Testamento para se ter acesso às informações históricas necessárias para a reconstrução do CP. Essa posição reflete os pressupostos de que a história equivale ao relato canônico e que as doutrinas e fatos históricos são passíveis de reconstrução a partir desse corpo documental. A segunda corrente entende que, ainda que o CP tenha produzido textos (fontes escritas) desde suas origens, não é possível reconstruir a partir deles, de forma satisfatória, o papel ocupado pelas comunidades cristãs no mundo antigo, suas práticas, seu ethos social, seu desenvolvimento institucional, entre outros. Além de quase não haver evidências materiais nos dois primeiros séculos, as fontes escritas são por demais fragmentárias e ficcionais. São fragmentárias no sentido de que cobrem apenas alguns aspectos da vida dos cristãos na sociedade greco-romana, em algumas regiões, e em perspectivas muito específicas. O elemento ficcional e imaginativo desses textos também conflita com os interesses de uma historiografia tradicional, interessada em fatos e instituições. 


Nesse artigo delinearemos as possibilidades do estudo do CP na perspectiva da história cultural, considerando a ausência de evidências materiais e reconhecendo o caráter lacunar (literário) das fontes? Com esse objetivo levantaremos as seguintes questões: 


a) Os elementos imaginativos e ficcionais dos textos do CP nos permitem estudar a sua história e as categorias mentais por meio das quais grupos de cristãos concebem o mundo? Sendo as fontes de caráter literário, seria possível examinar essas fontes a partir das perspectivas de seus gêneros literários? 

b) Não seria necessário, dada a fragmentariedade das fontes do CP, e dado o escopo de uma história cultural (estruturas de longa duração), ampliar a cronologia do estudo e o corpus documental? Ou seja: quais textos e até que limite cronológico? c) Como inserir em estudos de história cultural a diversidade de grupos e tendências no CP, sem recair numa consideração atomista? É possível estudar os grupos considerados como “heréticos” em seus conflitos com outros grupos internos, ainda que inseridos na rede de discursos do CP? 

d) É possível resgatar memórias de práticas religiosas ao invés de ceder ao primado do doutrinal? Como resgatar e reconstruir hipoteticamente práticas mágicas, litúrgicas, ethos social, entre outros aspectos, a partir de textos de propaganda ou de caráter apologético? Como essas práticas religiosas coexistem com os elementos catequéticos e doutrinais de superfície, ainda mais quando podem estar em contradição com os mesmos? e) Como estudar o CP como movimento religioso no Império Romano, sem repetir a prática teológica de considerá-lo como novidade absoluta? A despeito de suas tensões com a sociedade que tipos de interações e negociações o CP promoveu na sociedade mediterrânea?

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