A canção do rap - A homenagem de Chico Buarque ao rapper Criolo retoma o antigo diálogo entre o cantofalado e a MPB

Edgard Murano

O rapper Criolo: versão Cálice rendeu-lhe uma homenagem do compositor Chico Buarque
Quem disse que a canção acabou? Após especulações sobre o seu fim, o gênero musical voltou a ser manchete. Na estreia da turnê de Chico Buarque em Belo Horizonte (MG), no começo de novembro, o compositor surpreendeu ao cantar em ritmo de rap uma resposta ao rapper Criolo:
"Era como se o camarada dissesse: 'Bem-vindo ao clube, Chicão, bem-vindo ao clube'. Valeu, Criolo Doido! Evoé, jovem artista. Palmas pro refrão do rapper paulista."
Um dos artistas mais cultuados da MPB, Chico retribuía a homenagem que lhe fizera Criolo, músico-revelação que, embora associado ao rap, deve seu sucesso ao talento com que dialoga com estilos como o jazz, o afrobeat e a MPB. Autor do hit Não Existe Amor em SP , do álbum "Nó na Orelha", o rapper paulista venceu três categorias do VMB 2011 (prêmio da MTV Brasil), alternando o característico "cantofalado" do gênero com passagens mais melódicas e refrões "assobiáveis'.

"Pai, afasta de mim a biqueira,
afasta de mim as 'biate',
afasta de mim a 'cocaine',
pois na quebrada escorre sangue."

Ao parafrasear a canção Cálice , Criolo conseguiu não só a simpatia de Chico (que fez questão de repetir os versos parodiados no show) como aproximou dois gêneros que pareciam irreconciliáveis.
- Toda canção brasileira procede da fala, mesmo as que não parecem ter essa origem. Canção sem respaldo no "modo de dizer" não convence, não emplaca. Aliás, o rap é uma canção mais radical porque não camufla em nada sua origem verbal. É uma canção quase pura, despojada dos afetos normalmente associados à linha melódica - diz o linguista Luiz Tatit, autor de livros como Cancionista e Semiótica da Canção.
Antecedentes
Abreviação de rhythm & poetry (ritmo & poesia), o rap surgiu nos EUA na década de 60, sendo depois assimilado pelo Brasil. Sua origem está relacionada à tradição oral dos griots (contadores de histórias), equivalentes africanos dos bardos e dos vates ocidentais. Contudo, antes de o movimento hip hop fincar raízes no país nos anos 80, o estilo "cantofalado" já dera as caras em outros gêneros e tradições musicais.
- Há vários exemplos de "rap antes do rap", de canto realmente falado, na MPB. Exemplo é um trecho de Seu Jacinto , de Noel Rosa. Há também várias cantigas infantis como o "ordem" ("ordem/seu lugar/sem rir/sem falar", etc.) e o "pique" das festas de aniversário ("é pique/é pique/é pique, pique, pique"). Foi a união deste cantofalado ao samba que deu origem aos primeiros "proto-raps" em ritmo de samba, compostos pela dupla Alberto Paz e Edson Menezes e lançados por Jair Rodrigues, como Deixa Isso Pra Lá , Zigue-Zague e Tá Engrossando - afirma o jornalista e compositor Ayrton Mugnani Jr.

"Deixa que digam / Que pensem /
Que falem / Deixa isso pra lá /
Vem pra cá / O que que tem? /
Eu não estou fazendo nada /
Você também / Faz mal bater um papo /
Assim gostoso com alguém?"

Para Ayrton, essa evolução na maneira de cantar que culminaria no rap deu-se naturalmente no Brasil, já que sempre existiram tanto o "cantofalado" (monocórdico ou com pouca variação de notas) quanto a "fala cantada" (não monocórdica e com variação nas notas correspondente às sílabas). Assumindo diferentes nuances, cadências e modulações verbais, a música brasileira foi pródiga em manifestações que privilegiaram o ritmo falado, não raro de forma camuflada, como no "samba de breque", em que simplesmente se interrompe a melodia para um aparte comentado.


Itamar Assmpção: espírito de época propenso a lirismo menos melódico e mais ligado à concretude da fala cotidiana
Tradição falada
Tatiana Ivanovici, jornalista e produtora cultural responsável pelo portal DoLadoDeCá [www.doladodeca.com.br ], reforça a tese de que o cantofalado tem antecedentes antigos na tradição musical brasileira.
- Antes de o rap surgir já tínhamos a embolada, o repente, o partido-alto, que fazem uso do improviso, free style , etc. Ritmos tradicionais e regionais do Brasil que também utilizam o cantofalado - explica Tatiana. O próprio Chico Buarque já flertara com o repente e a embolada em canções como Ode aos Ratos (2006) e Olê Olá (2005).
Outro cantor e compositor brasileiro que se valeu da modulação da fala em suas canções foi Itamar Assumpção. Por ocasião do lançamento da obra completa do músico pelo Sesc (o box "Caixa Preta") em outubro de 2010, o jornalista e DJ Ronaldo Evangelista afirmou que Assumpção era um artista particular, cujas canções não derivavam de movimentos ou planos, mas eram "costuradas sobre riffs e linhas e beats de baixo e crônicas de cantofalado com achados poéticos da vida de todo dia".
Embora a obra de Assumpção não guarde relação direta com a black music de matriz norte-americana, à qual se filia o rap, o estilo idiossincrático e alternativo do músico parece ter se alimentado de um "espírito de época" propenso a um lirismo menos melódico e mais ligado à concretude da fala cotidiana. Nesse sentido, pode-se dizer que o rap se valeu dessa modulação verbal, despida dos afetos da melodia, para reforçar sua mensagem.
- O rap é uma canção dedicada aos conteúdos referenciais, como denúncias, protestos, crônicas e relatos, daí a necessidade de neutralização dos grandes percursos melódicos ou passionais para que se preste atenção ao conteúdo da fala - afirma Luiz Tatit.
Assim, com a melodia quase totalmente minimizada e com as reiterações típicas da canção em segundo plano, abre-se caminho para uma linguagem mais objetiva.
Referencial
Não por acaso, a introdução de Fim de Semana no Parque , primeira faixa do álbum "Raio X do Brasil" (1993), do Racionais Mc's, põe a limpo esse caráter referencial e informativo do rap, que o grupo ajudou a amadurecer no Brasil.
"Você está entrando no mundo da informação, autoconhecimento, denúncia e diversão. Esse é o raio x do Brasil, seja bem-vindo... a toda comunidade pobre da zona sul."
O amadurecimento dessa linguagem, levado a cabo por nomes como Mano Brown, Sabotage, Thaíde, Don L, Emicida entre muitos outros rappers que ajudaram a dar uma cara ao gênero, está longe de ter fim. Desde a linhagem mais melódica e celebratória do rap (inspirada no estilo West Coast norte-americano) até o Gangsta (por sua vez mais monocórdico e centrado na vida marginal), o cantofalado brasileiro vem se diversificando e assumindo influências. São muitos os exemplos de rappers que vêm conseguindo "arejar" o discurso do gênero, empurrando suas fronteiras e levando-o a outros públicos sem facilitá-lo ou descaracterizá-lo.
O próprio Mano Brown tem conseguido imprimir em seus versos um ritmo cada vez mais complexo e próximo da fala, mas nem por isso menos interessante, distanciando o rap das cadências monocórdicas e da métrica simples que marcaram o gênero nos anos 80. Em O Tempo é Rei , do álbum "Equilíbrio", Brown abandona qualquer melodia ou ritmo para exercer, em tom de conversa, sua verve de cronista ao longo dos quase 20 minutos da canção. Um outro Brown, porém, já lançara mão desse artifício. Em King Heroin (1972), o "padrinho do soul" James Brown deixou de lado a melodia habitual do funk para adotar uma cadência puramente falada, alertando as pessoas sobre os perigos do vício em heroína.


Jair Rodrigues: samba falado antes do rap
Conversa
O francês Serge Gainsbourg usou o recurso da fala em seu cultuado álbum "Histoire de Melody Nelson" (1971), em que longas passagens faladas se mesclam a faixas de rock progressivo. Porém, é na canção Requiem pour un Con , também de Serge, que temos um dos exemplos mais bem acabados de "proto-rap", marcado por uma batida forte e pela fala monocórdica.
Nos EUA, não há um consenso sobre a paternidade do rap, dividida entre Kurtis Blow, Gil Scott-Heron e The Last Poets, além de Isaac Hayes, com sua memorável faixa Ike's Rap , do álbum "Black Moses" (1971). Chama atenção também o primeiro disco de Gil Scott-Heron, "Small Talk at 125th and Lenox" (1970), algo como "conversa fiada na 125 com a Lenox". Nesse álbum, um dos marcos do gênero, descortina-se um rap mais primitivo, com percussão africana ao fundo e letras declamadas por Gil, tal como se fazia nos happenings e saraus.
Clássicos
Em sua origem na música clássica, o termo "cantofalado" (do alemão Sprechgesang ) designa a técnica expressionista vocal situada entre o canto e a fala, ligada à recitação operística, na qual certas "alturas" são cantadas e articuladas como na fala. O exemplo mais bem acabado dessa técnica está na ópera atonal Pierrot Lunaire (1912), do austríaco Arnold Schoenberg, pai do método dodecafônico de composição. Grosso modo , o método consistiu na eliminação sistemática da melodia tal como concebida pela música ocidental de então.
A neutralização melódica do rap, assim como definiu Luiz Tatit, não deixa de ter relação com o atonalismo schoenberguiano. Ao enfatizar a mensagem, despindo-a de adornos melódicos, não só o rap como outros estilos exacerbaram o conteúdo das canções, tornando-as ásperas e agressivas, mas também intimistas e até literárias. Mesmo assim, há quem não tome o cantofalado do rap como canção. A esse respeito, Tatit comenta:
- O rap é o sinal mais notório da vitalidade da linguagem da canção. O que podemos dizer é que o rap é um gênero de canção. Isso é mais aceitável - afirma o linguista.
Nesse sentido, o diálogo entre Criolo e Chico Buarque não teria nada de novo. Indicaria que, para além dos preconceitos do ramo, gêneros como rap e MPB não são tão diferentes como se pensava. A iniciativa da dupla relativiza um fato de estilo que, como a história demonstra, não é exclusividade de um gênero, assim como nenhum gênero que se preze deve ficar inerte ante o florescimento de outras linguagens.

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